domingo, 30 de junho de 2013

As mães da Síria

Mário Rita
O trágico é um estado preparatório da profecia.
Walter Benjamin

As mães da Síria

Os canteiros das mães não são regados nas estações do ano
Regam-se nos dias escurecidos da guerra com a água dos olhos
Uma casa deixou de ter tapetes e duas meninas que estavam sentadas

Uma visão alegórica do mundo é mais real
Do que a visão da História
Que contém a cisão entre o para sempre
E o transitório

Um anjo melancólico está desolado pelas mães
Sem que elas lhe possam valer
As lágrimas são cascatas
Embebem as asas do anjo
Que já não pode subir aos céus
E também contribui para a rega dos canteiros

Às vezes arranca as ervas
E pisa os caminhos


Nenhuma vez deixa de chorar pelas meninas

quinta-feira, 27 de junho de 2013

As meninas da Síria X

Mário Rita

Choram crianças na noite roxa

A noite roxa traz consigo o luto  

Outrora as crianças e os rebanhos conviviam
Junto das searas

Agora os rebanhos sumiram-se da terra
Assustados

A cicatriz nunca sara nas tuas mãos menina síria

A vida aí é um poço escuro
Até mortos caminham
Mortos que estão vivos ainda
À beira de morrer
Respirando o enxofre
Que dizimou as searas

Menina Síria
Não te posso confortar

A terra está cheia de campas a céu aberto
A terra está cheia de campas a céu aberto
A terra é toda a Síria
A Síria é toda a terra

Uma menina que morre aí morre aqui

domingo, 23 de junho de 2013

Um menino da Síria II

Mário Rita

Bebem a água da guerra os cordeiros dos beduínos
Só uma luz celestial pode iluminar a casa onde mora um menino
A casa não tem luz
Vivem assim estes meninos

Nenhum cordeiro é mais pobre do que as pessoas da Síria
Alguns fugiram do deserto
São cordeiros da mendicância
Os cordeiros da mendicância estão desorientados e morrem
Nos caminhos

O menino não é conduzido pelo cordeiro

Na Síria as luzes estão apagadas
Nenhuma casa tem gerador

Nenhuma tribo se ergueu salva
Nenhuma tribo se ergueu salva
Nenhum anjo veio anunciar nada
Ninguém disse a este menino: Estou aqui
Nenhum mirto nem oliveira se tornou numa árvore salvadora

Ninguém salva os descendentes da mesma tribo
Nenhuma estrela indicou a direcção

Este menino ainda tem um grão de areia na sua boca para a fome
Os pais do menino puseram-se a caminho  com um farol aceso
Durante a noite como cavalos no mar
Que não têm mirra nem incenso
O menino tem de passar a fronteira
Numa transumância diferente da dos seus antepassados

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Uma menina da Síria IX


Mário Rita

Uma menina pôs termo à vida com treze anos
Por demasia de sofrimento
de viver refugiada com a família
Nos túmulos subterrâneos dos antepassados

Quando os campos estão brancos
De amendoeiras em flor
Essas árvores têm pingentes de luto nos ramos

Tocando o infinito talvez
Ao revés do lastro de servidão
Dos que cá ficam
Em jazidas de arcadas de túmulos
Onde se acantonam os refugiados da guerra
Neste mês de Março

O talo das ervas dá de comer às famílias
Que comem o unto em vez do borrego
Preparado em frigideiras enferrujadas

Já o tempo terá dispersado todos os pássaros
As traças rodarão sobre si a última dança antes da morte
Hibiscos negros atordoam os sentidos

A menina jaz enfeitada de rosários de lágrimas
Com a coroa das mãos da mãe
Erguida a três metros do solo

O vento não se infiltra nos túmulos dos mortos de outrora
Mas confunde-se à superfície
Com as pegadas que a guerra vai deixando
Por toda a Síria

As famílias tomam o chá na concha das mãos
A água da chuva mata a sede

A nidificação dos pássaros
Dos pássaros da vida da menina
Não aconteceu
Os ovos estalaram

Os rostos seminus dos sobreviventes
Andam descalços sem caminho para ver adiante
Uma luz ateia-se no rebordo de uma circunferência de giz
Desenhada sobre um montículo ao ar livre
Os familiares quiseram que subisse ali aos céus dourados
Àqueles que se destinam aos anjos que não puderam
Permanecer sucumbidos ao sofrimento desta vida

Nem as constelações sossegam
No esplendor divino onde estão e tudo vêem

Centelhas muito mais finitas
Espreitam pela noite no tecto a rasar os rostos vivos
São os morcegos odiando os homens que ocupam as suas galerias

Um dia a menina sentiu que o terror nunca iria acabar
Parecia um corpo insuflável
Desidratada

Agora descansa numa vida indivisível desta
Num lugar que não é o império dos morcegos

domingo, 16 de junho de 2013

Um menino da Síria

Mário Rita
Só numa cidade antiga
Uma cidade de ruínas e pássaros
Uma cidade sem ninguém desde o séc. III
A vida pode existir sem sobressaltos

Há uma sinagoga e uma capela
E vida vegetal nas pedras
Os pássaros passeiam
E poisam nas ruínas

E não se ouvem sinos
A anunciar desgraças

A existência das pessoas pertence a um passado remoto
Não consta que tenha havido um terramoto
Só que às vezes abandonam-se os sítios por causas maiores
Que têm a ver com buscas incessantes de novas vidas

Os arqueólogos afadigaram-se ali antes de a guerra eclodir
Meio pente de terracota foi sujeito a análises
E a asa de uma bilha

Soube-se pouca coisa

Mas os pássaros ainda cantam

A capela tem um vitral incompleto
A refracção da luz revela a vida de um menino
Que outrora ali cumpriu um sacramento

Hoje os meninos servem de escudos na guerra

terça-feira, 11 de junho de 2013

As meninas da Síria VIII




Mário Rita
Um míssil caiu numa mesquita

 As mesquitas são a casa intermitente
Para os que buscam um refúgio
Sobretudo mulheres e crianças

Mãos orantes pequeninas ardem sem terem salvação

Uma menina voa no bico de um pássaro para longe
Ungida pela febre
Que provoca visões salvíficas

Outra menina sobe a uma colina

Estas meninas estão
Numa tenda que serve de hospital

Uma coruja bebé foi salva por um enfermeiro
E acompanha-as
Com uma ladainha
Que só as crianças doentes sabem
O que quer dizer

sábado, 8 de junho de 2013

As meninas da Síria VII



Mário Rita


A claridade de uma nuvem pode descer à terra

Abrir o mar
Multiplicar os peixes

Dar pelo menos um peixe a cada criança
Num sonho
De uma menina

Uma menina e mais outra acenam com um
Lenço branco a uma terceira
Um lenço branco está embebido da claridade de uma nuvem

Duas meninas pobres bebem a água que não existe
Comem o pão que não existe
As oliveiras curvam-se à sua passagem
Movidas pelo vento

Os joelhinhos doem de rezar sobre a terra
Na realidade a vida tem sempre um destino

terça-feira, 4 de junho de 2013

As meninas da Síria VI

Mário Rita
O chão da mesquita está cheio de pregos e ninguém vê
O chão da mesquita está cheio de pregos e ninguém vê

Ofereci-te umas sandálias brancas às tiras
Tem cuidado quando as descalçares minha irmã
Entras com as sandálias na mão
As sandálias têm uma irradiação de luz
Que potencia o espaço sagrado

Há mendigos que vêm ter contigo
Com um sorriso nos lábios
Um sorriso que sai da sua carne
Alguns são crianças

A queda de uma menina pode parar a primavera
A queda de uma menina parou a primavera
A queda foi do degrau mais alto do templo

A guerra começou a seguir

segunda-feira, 3 de junho de 2013

As meninas da Síria V


Mário Rita

Os jumentinhos estavam tristes
Eram jumentinhos que davam abraços às jumentinhas

As jumentinhas tinham vindo de longe para brincar com as meninas
Eram jumentinhas que conheciam as searas de trigo
Duas rosas nasceram num jardim
As jumentinhas não comeram as rosas

As rosas eram as chagas de uma menina
As rosas eram duas e as chagas eram duas uma em cada mão

As jumentinhas nunca tinham visto tanta maldade
Ofereceram uma lágrima à menina
Que não resistiu muito tempo

Aos pés da menina brotou uma fonte

A fonte era uma luz
A fonte era uma luz
A fonte era uma luz

A luz guiava as jumentinhas de noite

sábado, 1 de junho de 2013

As meninas da Síria IV


Mário Rita



Anjo triste
Anjo puro
Anjo que dormes nos umbrais
Anjo das manhãs
Anjo que não dormes
Anjo que não desces numa nuvem
Anjo da terra no céu
Anjo da água aspergida
Anjo possível e real ao mesmo tempo
Anjo que bebe a água que não tem
a fórmula química da água
Anjo terreno na tua condição eterna
Anjo que não és só eterno
Anjo que viste os copistas de deus
Escreverem esta tragédia
Anjo que assististe ao fiat
Anjo que te alarmaste quando a
Luz não se acendeu nas escadarias celestes 
Anjo com uma materna face que perdeu o esplendor
Anjo concebido nos desertos sem matéria
Traz a tua vida
Santa solidão é a tua vida
Anjo ser espiritual que enternece
Anjo com um manto tecido nos teares eternos
Anjo que tens um sorriso incorpóreo
Que desafia a física nuclear
Nada explode em ti
Nenhuma partícula se perde
Anjo que te separas da matéria
Por uma homeóstase
Anjo que só vês escuridão
Sem um único ponto luminoso que sobressaia
Sem tréguas o teu coração volta-se para o céu
E rezas uma prece infinita
Noites a fio vês as meninas e as suas mães
Sem que possas ser visto
A tua dor não conhece os limites
Anjo que não bebes água por nenhum copo
Anjo que prodigalizas o ser em completo recolhimento
Tão alheado do corpo que outrora te conteve
Pudesses tu salvar as meninas da Síria