quarta-feira, 19 de junho de 2013

Uma menina da Síria IX


Mário Rita

Uma menina pôs termo à vida com treze anos
Por demasia de sofrimento
de viver refugiada com a família
Nos túmulos subterrâneos dos antepassados

Quando os campos estão brancos
De amendoeiras em flor
Essas árvores têm pingentes de luto nos ramos

Tocando o infinito talvez
Ao revés do lastro de servidão
Dos que cá ficam
Em jazidas de arcadas de túmulos
Onde se acantonam os refugiados da guerra
Neste mês de Março

O talo das ervas dá de comer às famílias
Que comem o unto em vez do borrego
Preparado em frigideiras enferrujadas

Já o tempo terá dispersado todos os pássaros
As traças rodarão sobre si a última dança antes da morte
Hibiscos negros atordoam os sentidos

A menina jaz enfeitada de rosários de lágrimas
Com a coroa das mãos da mãe
Erguida a três metros do solo

O vento não se infiltra nos túmulos dos mortos de outrora
Mas confunde-se à superfície
Com as pegadas que a guerra vai deixando
Por toda a Síria

As famílias tomam o chá na concha das mãos
A água da chuva mata a sede

A nidificação dos pássaros
Dos pássaros da vida da menina
Não aconteceu
Os ovos estalaram

Os rostos seminus dos sobreviventes
Andam descalços sem caminho para ver adiante
Uma luz ateia-se no rebordo de uma circunferência de giz
Desenhada sobre um montículo ao ar livre
Os familiares quiseram que subisse ali aos céus dourados
Àqueles que se destinam aos anjos que não puderam
Permanecer sucumbidos ao sofrimento desta vida

Nem as constelações sossegam
No esplendor divino onde estão e tudo vêem

Centelhas muito mais finitas
Espreitam pela noite no tecto a rasar os rostos vivos
São os morcegos odiando os homens que ocupam as suas galerias

Um dia a menina sentiu que o terror nunca iria acabar
Parecia um corpo insuflável
Desidratada

Agora descansa numa vida indivisível desta
Num lugar que não é o império dos morcegos